ARTIGO

Alvíssaras, Meu Capitão
Luiz Claudio Romanelli*
“Política não se faz com ódio, pois não é função hepática. É filha da consciência, irmã do caráter, hóspede do coração. Eventualmente, pode até ser açoitada pela mesma cólera com que Jesus Cristo, o político da Paz e da Justiça, expulsou os vendilhões do Templo. Nunca com a raiva dos invejosos, maledicentes, frustrados ou ressentidos. Sejamos fiéis ao evangelho de Santo Agostinho: ódio ao pecado, amor ao pecador. Quem não se interessa pela política, não se interessa pela vida.” (Ulysses Guimarães)
Ulysses Guimarães, o grande artífice da nossa Constituição e da redemocratização do país, faria 100 anos em 6 de outubro. Deputado federal por 11 vezes em seus mais de 40 anos de vida pública, foi presidente da Câmara dos Deputados por três vezes, fundador do MDB e do PMDB, presidente do partido e símbolo da resistência contra a ditadura.
Eu poderia escrever sobre toda a sua trajetória, marcada pela coragem e por ações e enfrentamentos memoráveis, mas prefiro destacar alguns momentos de sua biografia, que revelam a grandeza do homem e do político inigualável que ele foi. O primeiro deles é a anticandidatura a presidente da República, num tempo em que as eleições diretas para presidente e para os governos estaduais haviam sido substituídas pelo famigerado colégio eleitoral.
Em 1973, num ousado desafio à ditadura, a convenção nacional do MDB lançou Ulysses Guimarães “anticandidato” à Presidência da República, tendo como vice o jornalista e ex-governador de Pernambuco Barbosa Lima Sobrinho. Não havia chance de vitória num colégio eleitoral em que a Arena era majoritária, mas a intenção era denunciar a farsa eleitoral e a violação de direitos e a censura. Através de uma campanha simbólica, o presidente do MDB percorreu o país denunciando os crimes da ditadura.
O discurso que Uysses Guimarães fez naquela histórica convenção- “Navegar é preciso, viver não é preciso” foi absolutamente genial e é um peça de retórica impecável, provavelmente o maior discursos que ele fez.
“Não é o candidato que vai percorrer o país. É o anticandidato, para denunciar a antieleição, imposta pela anticonstituição que homizia o AI-5, submete o Legislativo e o Judiciário ao Executivo, possibilita prisões desamparadas pelo habeas corpus e condenações sem defesa, profana a indevassabilidade dos lares e das empresas pela escuta clandestina, torna inaudíveis as vozes discordantes, porque ensurdece a nação pela censura à imprensa, ao rádio, à televisão, ao teatro e ao
cinema.
“Ressaltarei nesta convenção a liberdade de expressão, que é apanágio da condição humana e socorre as demais liberdades ameaçadas, feridas ou banidas. É inócua a prerrogativa que faculta falar em Brasília, não podendo ser escutado no Brasil, porquanto a censura à imprensa, ao rádio e à televisão venda os olhos e tapa os ouvidos do povo. O drama dos censores é que se fazem mais furiosos quanto mais acreditam nas verdades que censuram. E seu engano fatal é presumir que a censura, como a mentira, pode exterminar os fatos, eliminar os acontecimentos, decretar o desaparecimento das ocorrências indesejáveis. A verdade poderá ser temporariamente ocultada, nunca destruída. O futuro e a História são incensuráveis”.
Um detalhe: a lei garantia que o discurso do candidato da oposição à Presidência da República no colégio eleitoral fosse transmitido em rede nacional. Tudo foi gravado, mas nada foi exibido porque o governo Médici censurou.
No discurso, o Dr. Ulysses pontuava o ideário emedebista combatia a política econômica adotada pelos militares, que preconizava fazer crescer o bolo para depois dividi-lo : “A liberdade e a justiça social conformam a face mais bela, generosa e providencial do desenvolvimento, aquela que olha para os despossuídos, os subassalariados, os desempregados, os ocupados em ínfimo ganhapão ocasional e incerto, enfim, para a imensa maioria dos que precisam para sobreviver, em lugar da escassa minoria dos que têm para esbanjar.
Desenvolvimento sem liberdade e justiça social não tem esse nome. É crescimento ou inchação, é empilhamento de coisas e valores, é estocagem de serviços, utilidades e divisas, estranha ao homem e a seus problemas. Enfatize-se que desenvolvimento não é silo monumental e desumano, montado para guardar e exibir a mitologia ou o folclore do Produto Interno Bruto, inacessível tesouro no fundo do mar, inatingível pelas reivindicações populares.
É intolerável mistificar uma nação a pretexto de desenvolvê-la, rebaixá-la em armazém de riquezas, tendo como clientela privilegiada, senão exclusiva, o governo para custeio de tantas obras faraônicas e o poder econômico, particular ou empresarial, destacadamente o estrangeiro, desnacionalizando a indústria e dragando para o exterior lucros indevidos.
É equívoco, fadado à catástrofe, o Estado absorver o homem e a nação. A grandeza do homem é mais importante do que a grandeza do Estado, porque a felicidade do homem é a obra-prima do Estado. O Estado é o agente político da nação. Além disso e mais do que isso, a nação é a língua, a tradição, a família, a religião, os costumes, a memória dos que morreram, a luta dos que vivem, a esperança dos que nascerão”.
Se havia dúvidas entre os “autênticos” do MDB, que resistiam a lançar a candidatura de Ulysses, por temor de que ela referendasse o espúrio colégio eleitoral de cartas marcadas, elas se dissiparam ali. “Srs. Convencionais, a caravela vai partir. As velas estão pandas de sonho, aladas de esperanças. O ideal está ao leme e o desconhecido se desata à frente. No cais alvoroçado, nossos opositores, como o Velho do Restelo de todas as epopeias, com sua voz de Cassandra e seu olhar derrotista, sussurram as excelências do imobilismo e a invencibilidade do establishment. Conjuram que é hora de ficar e não de aventurar.
Mas, no episódio, nossa carta de marear não é de Camões e sim de Fernando Pessoa ao recordar o brado: “Navegar é preciso. Viver não é preciso”. Posto hoje no alto da gávea, espero em Deus que em breve possa gritar ao povo brasileiro: Alvíssaras, meu capitão. Terra à vista! Sem sombra, medo e pesadelo, à vista a terra limpa e abençoada da liberdade”.
O discurso não foi transmitido pela tevê, mas reproduzido em panfletos, circulou por todo o país. Eu era ainda um adolescente em Londrina, mas a partir daí decidi que era imprescindível participar da
política e na oposição ao regime militar que alijava a participação popular.
A semente plantada pelo Dr. Ulysses em 73, frutificou em 74. As eleições tiveram um caráter plebiscitário. O MDB elegeu 15 senadores nas 21 vagas em disputa e 165 entre os 364 deputados federais.
O troco dos militares viria com em abril de 1977. O presidente Geisel decretou o recesso do Congresso, editando em seguida o chamado “pacote de abril”, que mantinha eleições indiretas para os governos estaduais em 1978, sublegendas para o Senado; e eleição indireta de um senador “biônico” para cada estado.Dois meses depois, o MDB realizou em Brasília o simpósio A luta pela democracia e obteve do Tribunal Superior Eleitoral autorização para transmitir os pronunciamentos do seu presidente, Ulysses Guimarães, do líder do partido no Senado, André Franco Montoro, do presidente do Instituto de Estudos Políticos Pedroso Horta do partido, Alceu Colares, e do líder na Câmara, o paranaense José Alencar Furtado.
Em cadeia nacional de rádio e tevê, o dr.Ulysses criticou o regime: “O mal que dizima e desestabiliza a nação só tem um nome e um diagnóstico, ausência de democracia, e só uma cura: restabelecimento da democracia.” Alencar Furtado denunciou a tortura e o desaparecimento e a morte de militantes políticos: “O programa do MDB defende a inviolabilidade dos direitos da pessoa humana para que não haja lares em prantos; filhos órfãos de pais vivos — quem sabe — mortos, talvez. Órfãos do talvez ou do quem sabe. Para que não haja esposas que enviuvem com maridos vivos, talvez; ou mortos, quem sabe? Viúvas do quem sabe ou do talvez”.
Três dias depois, veio a reação da ditadura. Alencar Furtado teve seu mandato cassado e seus direitos políticos suspensos por dez anos. O Dr. Ulysses seria processado com base na Lei de Segurança Nacional e mais tarde absolvido pelo Supremo Tribunal Federal.
Militei naquele MDB velho de guerra, pela anistia, pelo restabelecimento das liberdades e pelas eleições livres e diretas.
Anos depois, em 1984, tive o privilégio de receber o dr. Ulysses no primeiro comício pelas Diretas Já, em Curitiba, como secretário geral do PMDB do Paraná. Em 89, estive na convenção nacional que o escolheu candidato à presidência. Desgastado pelo fracasso do Plano Cruzado, pela proximidade com o governo Sarney e pelo racha no PMDB, ele teve 4,43% dos votos, ficando em sétimo lugar na disputa.
Outro grande momento de sua vida pública foi sua participação na Assembléia Nacional Constituinte, instalada, no dia 1º de fevereiro de 1987. Graças a sua atuação, o processo da construção da nova
Constituição foi aberto à participação popular . No dia 5 de outubro de 1988, quando a Constituição Cidadã foi promulgada, o Dr. Ulysses fez outro discurso memorável.
A Constituição, disse , “certamente não é perfeita. Ela própria o confessa ao admitir a reforma. Mas, quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la nunca. Traidor da
Constituição é traidor da pátria. Conhecemos o caminho maldito: rasgar a Constituição, trancar as portas do parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio, o cemitério.
Quando após tantos anos de lutas e sacrifícios promulgamos o Estatuto do Homem da Liberdade e da Democracia bradamos por imposição de sua honra. Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo.. .
…A vida pública brasileira será também fiscalizada pelos cidadãos.
Do Presidente da República ao prefeito, do senador ao vereador. A moral é o cerne da pátria. A corrupção é o cupim da República.
República suja pela corrupção impune tomba nas mãos de demagogos, que a pretexto de salvá-la a tiranizam. Não roubar, não deixar roubar, por na cadeia quem roube, eis o primeiro mandamento da moral pública.
…É caminhando que se abrem os caminhos. Ela vai caminhar e abri-los. Será redentor o caminho que penetrar nos bolsões sujos, escuros e ignorados da miséria. A sociedade sempre acaba vencendo, mesmo ante a inércia ou o antagonismo do Estado.
…A Nação quer mudar. A Nação deve mudar. A Nação vai mudar. A Constituição pretende ser a voz, a letra, a vontade política da sociedade rumo à mudança. Que a promulgação seja o nosso grito. Mudar
para vencer. Muda Brasil.”
Em 1992, aos 76 anos, o Dr. Ulysses desapareceu em um acidente de helicóptero no litoral do Rio de Janeiro. O PMDB perdeu seu maior líder e o Brasil um homem público como poucos, que não se acovardou
nos momentos mais sombrios, que teve serenidade, ponderação e manteve o diálogo, mesmo com seus piores adversários. Que sua vida nos sirva de exemplo, em tempos tão difíceis.
Boa Semana a todas e todos! Paz e Bem!
*Luiz Cláudio Romanelli, advogado e especialista em gestão urbana, ex-secretário da Habitação, ex-presidente da Cohapar, e ex-secretário do Trabalho, é deputado pelo PSB e líder do governo na Assembleia Legislativa do Paraná.

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